NOTÍCIAS04/01/2021 Endividamento global mostra que é preciso adotar um novo sistema financeiroO endividamento das famílias, das empresas e dos governos atingiu 164 trilhões de dólares em 2018, mais do que o dobro do PIB mundial. Os juros sobre essa massa de recursos drenam a capacidade de expandir a demanda das famílias, a produção das empresas e o financiamento de infraestrutura e de políticas sociais por parte dos governos. No caso do Brasil, a extração de recursos pelos rentistas atingiu níveis que paralisam a economia. Na realidade, como se observou com a própria crise de 2008, o processo atinge a economia mundial. A exploração por meio de endividamento se tornou o principal meio de apropriação do excedente social por quem não o produz; e, na medida em que o próprio Estado, em vez de regular, torna-se parceiro da extração desse excedente, a armadilha passa a envolver a totalidade do sistema. Zygmunt Bauman avalia esse “capitalismo parasitário” em texto bem-humorado: o sistema atual é um “sucesso ao transformar uma enorme maioria de homens, mulheres, velhos e jovens numa raça de devedores. […] Sem meias palavras, o capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas não pode fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, destruindo assim, cedo ou tarde, as condições de sua prosperidade ou mesmo de sua sobrevivência”. 1 Ao se capturarem todos os endividados num fluxo interminável de juros, cujo volume ultrapassa radicalmente o aporte produtivo dos créditos, forma-se um dreno permanente. Os intermediários financeiros, inclusive, detestam os bons pagadores. Os melhores clientes são aqueles que, de refinanciamento em refinanciamento, se tornam fonte permanente de alimentação do sistema. “O cliente que paga prontamente o dinheiro que pediu emprestado é o pesadelo dos credores”. 2 No Brasil, em particular, cada vez mais pessoas se dão conta do absurdo de depositarem dinheiro nos bancos que as remuneram em nível que mal cobre a inflação, enquanto na hora que precisam do recurso – que não é do banco – pagam juros astronômicos. A usura e a agiotagem constituem práticas com raízes na pré-história; com o dinheiro eletrônico, elas se tornaram um sistema planetário. Mesmo os mais humildes contribuem para os bancos a cada compra com cartão de crédito, a cada remessa para a família. No entanto, essa mesma capilaridade do sistema virtual permite a inversão do processo. Em outros termos, temos de encontrar na mesma transformação tecnológica a base da nossa liberação do dreno permanente a que somos submetidos, um pedágio não só inútil como contraproducente. Precisamos desses intermediários? Temos as alternativas dos bancos cooperativos (Polônia), dos bancos comunitários de desenvolvimento (114 já no Brasil), das caixas econômicas locais (Sparkassen, na Alemanha), das moedas sociais (o palma, o sampaio e tantas outras no Brasil), dos bancos públicos locais (Bank of North Dakota, nos Estados Unidos), das ONGs de crédito (Placements Éthiques, na França), do contato direto e sem atravessadores entre produtores e clientes (agricultura familiar no Quênia) e, inclusive, da desintermediação mais radical com moedas virtuais e trocas comerciais por meio das tecnologias blockchain. Tudo isso ainda é muito pouco, mas quem disse que o dinheiro como sinal virtual não pode tramitar diretamente entre os que o usam de maneira produtiva, sem que para isso seja preciso pagar tanta intermediação que trava em vez de ajudar? Os bancos existentes poderão encontrar o seu papel voltando àquilo que justifica a sua criação: agregar poupanças para empréstimos, com modalidades e juros regulados, que permitam desenvolver atividades produtivas, gerando emprego e renda. Isso, naturalmente, dá trabalho. Identificar bons investimentos, avaliar os projetos, seguir a sua execução, ou seja, fomentar a economia real, fornecendo apoio técnico, com justa remuneração. Trabalho necessário, centrado na produtividade sistêmica da economia. O cálculo de viabilidade financeira de um projeto de investimento permite perfeitamente identificar que taxa de juros garante que o empreendimento seja viável. Em vez de publicidade, de fraude e de agiotagem, os bancos podem fazer a lição de casa e contribuir para a economia como qualquer outro setor de atividades. É particularmente importante entender que os recursos financeiros são apenas sinais magnéticos e que os fluxos financeiros devem fazer parte de uma política econômica cujo objetivo principal seja orientá-los para atividades em que serão mais produtivos. E sabemos como fazê-lo. Hoje temos suficientes experiências com bancos cooperativos, bancos comunitários de desenvolvimento, sistemas de microcrédito, caixas econômicas municipais, moedas sociais e sistemas de troca não monetária, para resgatar a utilidade do dinheiro e do crédito e redirecionar o uso dos nossos recursos. Ao dirigir os recursos para a base da sociedade, para as famílias que transformam a sua renda em consumo, aumentamos a demanda por bens e serviços. Essa demanda permite uma expansão das atividades produtivas por parte do mundo empresarial. Tanto o consumo (por meio do imposto sobre o consumo) como a atividade empresarial (por meio dos impostos sobre a produção) geram receitas para o Estado, o que permite que ele recupere o que colocou inicialmente na base da economia, cobrindo o déficit inicial e expandindo a sua capacidade de ampliar a dinâmica com investimentos em infraestrutura e políticas sociais. Por sua vez, os investimentos em infraestrutura dinamizam atividades empresariais e empregos. E as políticas sociais, em saúde, educação, cultura, segurança e semelhantes constituem investimentos nas pessoas, asseguram o consumo coletivo que melhora o bem-estar das famílias e torna o conjunto da economia mais produtivo. Atividades de professores, médicos e agentes de segurança também constituem empregos e produtos necessários, não são “gasto”. Esse ciclo econômico-financeiro, em que se melhora para as famílias o acesso aos bens de consumo e ao consumo coletivo, em que se amplia o mercado para as empresas, em que se reduz o desemprego pela expansão geral de atividades e em que o Estado resgata o seu equilíbrio financeiro por meio dos impostos correspondentes, chama-se simplesmente “círculo virtuoso”. Funcionou no enfrentamento da crise de 1929 nos Estados Unidos (New Deal), com forte imposto sobre as fortunas financeiras (até 90%) e expansão das políticas sociais e dos processos redistributivos. Funcionou na reconstrução da Europa no pós-guerra (Estado de bem-estar social, welfare State), com aumento sistemático da capacidade de compra das camadas populares, aumento sistemático dos salários proporcional ao aumento de produtividade e, naturalmente, políticas sociais de saúde, educação, segurança e outras, baseadas no acesso universal, público e gratuito. Funcionou na reconstrução da Coreia do Sul, que manteve um grau de desigualdade muito baixo. Funciona hoje na China, que vem priorizando a expansão do consumo popular e dos investimentos do Estado em infraestrutura e políticas sociais. E funcionou, obviamente, entre 2003 e 2013 no Brasil, enquanto a reação dos meios financeiros não quebrou o sistema. O óbvio ululante é que sabemos perfeitamente o que funciona em termos econômicos. O que não sabemos é de que modo conciliar o modelo que funciona com a vontade dos grupos financeiros, hoje dominantes, de extrair da economia mais do que para ela contribuem e, inclusive, mais do que ela pode suportar. Temos um sistema financeiro do século 21, com moeda virtual e movimentações planetárias, controladas por gigantes financeiros, mas nossas leis e formas de organização econômica são do século passado, da era industrial. Ainda imaginamos que mais dinheiro nas mãos dos mais ricos se transformará em mais investimentos produtivos, empregos e produtos? O único resultado serão maiores fortunas financeiras e o drama que enfrentamos de o 1% deter mais patrimônio do que os 99% seguintes. A narrativa que nos empurram, de que os ricos sabem melhor promover a economia, já não bate. Apresentamos aqui alguns eixos de oportunidades que surgem com a era do conhecimento e a economia do intangível. Os mesmos avanços tecnológicos que nos colocam a serviço e sob domínio de gigantes – Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft (Gafam) ou Baidu, Alibaba, Tencent, Xiaomi (BATX) – abrem espaço para articulações horizontais em rede3. A moeda virtual e a conectividade generalizada entre as pessoas e as empresas produtoras tornam possível desintermediar as finanças e torná-las produtivas e baratas. A sociedade em rede, que tão bem descreve Manuel Castells, torna viáveis processos decisórios horizontais, reduzindo o papel da verticalidade autoritária. A conectividade, aliada aos sistemas de busca inteligente, permite ampliar radicalmente as formas colaborativas de produção, terreno em que estamos dando apenas os primeiros passos. E a ascensão planetária das políticas sociais como principal área de atividade humana aponta para dinâmicas diferenciadas em termos de expansão do setor público, das organizações da sociedade civil e de formas descentralizadas e participativas de gestão. São novas configurações e oportunidades, mas o que temos enfrentado até agora é a invasão da privacidade e o controle social por parte dos gigantes da mídia comercial, a exploração desenfreada pelo endividamento, as pirâmides corporativas de poder que, além de não serem reguladas pelos governos, controlam o próprio processo político. A conectividade permite que os gigantes corporativos se dotem de dedos mais longos. A apropriação privada das políticas sociais leva a formas nocivas de expansão do rentismo em áreas vitais como saúde, educação e segurança. Temos assim um universo varrido por avanços tecnológicos e a construção de novos equilíbrios com definição insegura, podendo tanto levar ao BigBrother de George Orwell como gerar sociedades mais abertas, democráticas e participativas. Por enquanto, o mundo das corporações está claramente ganhando o jogo. Nosso problema não é a falta de recursos, mas de capacidade de utilizá-los de maneira inteligente. Temos tecnologias mais poderosas, mas com motivações cada vez mais duvidosas e finalidades simplesmente desastrosas. Temos um conflito crescente entre os interesses difusos da sociedade e os interesses pontuais das corporações. Uma consulta pública sobre a necessidade de se preservar a floresta amazônica obteria, seguramente, uma resposta favorável quase unânime da sociedade brasileira, mas esse interesse disperso e fragmentado, mesmo representando milhões de pessoas, torna-se impotente diante de uma corporação que vê a oportunidade de ganhar milhões de dólares, por exemplo, explorando o mogno. A corporação saberá financiar políticos, juízes ou órgãos de controle até obter as suas vantagens. O poder pontual tem muito mais força de penetração do que o interesse geral. Todos queremos preservar os oceanos, mas, entre o interesse difuso das populações e o lucro imediato que a sobrepesca ou o descarte de resíduos químicos diretamente nas águas podem gerar para alguns grupos econômicos, a luta é simplesmente desigual. Com a fragilização dos processos democráticos no plano nacional, e sua quase inexistência no plano mundial, passamos a assistir à destruição do meio ambiente e à sobre-exploração das populações em nível cada vez mais dramático. Com a erosão da democracia, a capacidade de representação do interesse geral se vê apropriada pelos próprios grupos corporativos. Em nome de reduzir o Estado, geram uma máquina cada vez mais invasiva e controladora. Outro mecanismo poderoso é constituído pelo gigantismo corporativo aliado à formação de clusters de interesses. O “arco do fogo” que destrói a floresta amazônica fornece uma clara ilustração. O mundo da madeira nobre – madeiras preciosas que não foi preciso plantar – é constituído por corporações fortes, e a exploração se reforça. Depois de tirada a nata da floresta, outro grupo de interesses, em particular o da soja, financia a queimada e o destroncamento, o que vai permitir algumas excelentes safras, importantes para o mundo igualmente poderoso dos grãos. Fragilizado o solo, pela perda de cobertura florestal e pela sobre-exploração da monocultura de grãos, abre-se o espaço para a pecuária extensiva; é a vez do poderoso grupo de interesses da carne. A convergência dos interesses das madeireiras, do agronegócio dos grãos e da cadeia produtiva da carne possibilita um domínio impressionante do espaço político nacional, com uma representação no Congresso que permite fragilizar a legislação de proteção das florestas e das matas ciliares, bem como aprovar o Projeto de Lei 6299/2002, conhecido como PL do Veneno. Tanto o conceito de interesses difusos como o conceito de clusters de poder ajudam a dimensionar as formas mais amplas de concentração de poder que fogem do controle dos sistemas democráticos de representação, quando deles não se apropriam. Voltamos ao título do estudo de Octavio Ianni, “A política mudou de lugar”. E a questão com que nos deparamos cada vez mais é bastante óbvia: teremos, Homo sapiens que somos, com a nossa capacidade de analisar racionalmente as dinâmicas e de tomar providências, como reverter as tendências? *Ladislau Dowbor é professor titular de economia da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de A era do capital improdutivo (Outras Palavras & Autonomia Literária). Publicado originalmente no site Outras Palavras.
Fonte: REDE BRASIL ATUAL |
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